quarta-feira, 14 de julho de 2010

Servindo a Deus com um coração idólatra

Mateus Ferraz de Campos


Há alguns meses, um amigo perguntou-me à queima-roupa, como se estivéssemos em um concurso bíblico: “Qual o primeiro dos dez mandamentos?” Reagindo com a mesma impetuosidade da pergunta, respondi a primeira coisa que me veio à mente: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento” (Mt 22.27).
Só depois de ver seu olhar de deboche, percebi que havia respondido rápido demais. Sem pensar, eu havia substituído o primeiro dos dez mandamentos, expresso em Êxodo 20.3, pelo resumo dos mandamentos dado por Jesus no Novo Testamento. Mas a brincadeira me fez pensar. Por que eu havia ignorado o tão solene mandamento: “Não terás outros deuses diante de mim”?
Meses depois, durante um período de oração, pedi a Deus que falasse comigo através de sua Palavra. Como todo pastor, tenho que exercer a disciplina de buscar na Palavra alimento para minha alma de ovelha e não somente novas mensagens para o rebanho que pastoreio. Isso pode levar algum tempo, a princípio.
Naquele dia, porém, meus olhos passaram novamente pelo texto de Êxodo 20.3, 4: “Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.” Sem nem ao menos considerar o texto, virei as páginas na Bíblia, buscando algo que fosse direcionado a uma pessoa já “convertida”, e não uma lição básica sobre idolatria destinada aos neófitos do Reino de Deus. Foi então que senti que Deus me levava de volta ao texto, e quanto mais eu o lia, mais parecia penetrar em minha alma. 

Uma Questão Mal Resolvida

Percebi que, enquanto meditava, algo acontecia paralelamente em meu coração. Eu tentava convencer a mim mesmo de que não havia nada a aprender sobre idolatria. Eu não era idólatra. Fora criado em um lar evangélico à prova de idolatria. Nascido em berço evangélico e criado em um país predominantemente católico, fui educado a abominar imagens de escultura desde minha infância. Eu as via como verdadeiras representações de demônios; abominava as romarias que passavam em minha vizinhança carregando imagens em altares portáteis. Nunca havia olhado mais do que cinco segundos para qualquer imagem, muito menos me prostrado diante de uma. O que eu, um cristão evangélico, teria a aprender sobre idolatria?
Pouco a pouco, percebi que estava vivenciando uma imensa batalha em minha mente. Enquanto Deus queria lidar com questões mal resolvidas em minha espiritualidade, minha natureza humana procurava esquivar-se da espada divina, defendendo-se com justificativas e racionalizações. Finalmente, depois de algum tempo, dobrei-me à voz do Espírito.
A idolatria é uma questão mal resolvida para os cristãos evangélicos. É mal resolvida por estar resolvida demais. Não temos problema nenhum em refutar e atacar as formas de religiosidade idólatra, nem em identificarmos e criticarmos tais posturas. Trata-se de um pecado que não freqüenta nossas listas. Admitimos freqüentemente que temos que lutar com a mentira, a maledicência, o orgulho, a vaidade, a promiscuidade e tantos outros pecados mais “evidentes”. Mas a idolatria é simplesmente considerada o “pecado dos outros”. Todavia, se olharmos para a narrativa bíblica, especialmente no Antigo Testamento, veremos que a questão da idolatria é um grande tema bíblico. Desde que Deus tirou Abraão da terra de Ur dos caldeus, reconhecidamente idólatra, para estabelecer um relacionamento de fidelidade a ele, os descendentes de Abraão lutam contra essa tendência que parece estar impregnada na própria natureza do homem.
A idolatria é irracional. Especialmente no contexto do Antigo Testamento. Sempre que vejo as narrativas dos milagres realizados por Deus, por ocasião da libertação do povo de Israel do cativeiro egípcio, tenho grande dificuldade em compreender como a idolatria encontrou espaço no coração dos hebreus. Como alguém pode sequer considerar a hipótese de construir um bezerro de ouro diante da recente abertura do imenso Mar Vermelho diante de seus olhos? Haveria maior prova da soberania de Deus do que as manifestações sobrenaturais do próprio Deus no Êxodo? Comida caindo do céu, águas amargas transformadas em doces, roupas que resistem ao tempo, sandálias que não se desgastam nos pés, águas que saem de rochas – a lista é imensa. Seria possível considerar a hipótese de adorar outros deuses, diante de manifestações tão claras de autoridade e poder? Mas, como sabemos, a idolatria continuou se revelando como um câncer na vida do povo de Deus. Como um viciado que volta à química, Israel voltava à idolatria.
Por que algo tão irracional era tão freqüente? Talvez a resposta esteja por trás do que compreendemos por idolatria. 

A Natureza da Idolatria

O que é um ídolo? A primeira figura que surge em nossas mentes é a de uma imagem de barro, metal ou pedra, diante da qual as pessoas se dobram para pedir alguma coisa. Mas o que está por trás dessa prática é o que constitui o problema.
A idolatria se define basicamente por três características essenciais: utilitarismo, egocentrismo e manipulação.

1. Utilitarismo

Em primeiro lugar, a idolatria é uma relação utilitarista. Um ídolo é um produto das mãos do próprio homem, construído a partir de suas paixões, desejos e necessidades. Nas culturas da antigüidade, os deuses nasciam a partir da necessidade imediata de determinado grupo. Por exemplo, o deus da fertilidade surgiu no contexto da necessidade da colheita. O deus da chuva, nas culturas indígenas, apareceu em um contexto de seca onde a chuva se revelava necessária e, até mesmo, urgente. Portanto, os deuses são construídos a partir de necessidades e desejos. Sem desejo não existe ídolo.
Em última análise, o ídolo não é um fim em si mesmo, e sim um meio para se atingir um fim. O ídolo não é adorado pelo que é e sim pelo que pode dar. O deus do idólatra é um objeto de uso. Uma espécie de trampolim para a realização de desejos pessoais.
Sendo assim, os ídolos nascem onde nascem os desejos. Os maiores postes-ídolos não são altares físicos, mas o próprio coração humano. Onde houver um desejo a ser realizado, existirá um deus a ser adorado. A idolatria não é um pecado exclusivo daqueles que se prostram diante de imagens. Faz parte de todo aquele que carrega – ainda que seja uma pequena fagulha – a ardente natureza corrompida do homem que o leva à busca de satisfação pessoal a qualquer custo.
A relação entre o desejo e o ídolo é dinâmica. De acordo com o desejo, o ídolo sofre mutações. Quando o desejo é dinheiro, o ídolo pode ser o trabalho. Mas quando o desejo é luxo, o ídolo é o próprio dinheiro. 
Quando o desejo é prazer, o sexo se torna um deus. Mas quando o desejo é sentir-se amado, o ídolo pode ser o próprio cônjuge ou os filhos. Quando o desejo é fama, o ídolo pode ser o conhecimento ou talento. Quando o desejo é poder ou controle, o cargo político ou o púlpito da igreja podem tornar-se um deus. O ídolo sempre alimenta o desejo e só é apreciado enquanto atende necessidades.
Para percebermos nossas tendências idólatras, precisamos reconhecer nossos maiores desejos. Onde está o nosso prazer? Onde encontramos satisfação? E mais ainda: que meios, pessoas, posições ou situações nos trazem a sensação do prazer? Quando identificamos os meios, identificamos os deuses. 

2. Egocentrismo

Em segundo lugar, a idolatria é egocêntrica. Se o que caracteriza a idolatria é o uso do deus, quem está no centro da espiritualidade não é o ídolo e, sim, o próprio homem. Enquanto alimenta o seu ídolo, o homem está, na verdade, trabalhando em prol de si mesmo. De fato, todos os ídolos são representações diferenciadas da própria tendência humana de auto-exaltação. Se olharmos nos olhos das “imagens de escultura” de nossos corações, veremos fotos ampliadas de nós mesmos. Enquanto alimentamos o que nos proporciona o objeto de desejo, somos nós mesmos que estamos sendo adorados.
A grande tentação humana é fazer do homem o seu próprio centro. Disfarçada nas mais diversas formas de devoção está a síndrome do Éden: ser igual a Deus. 

3. Manipulação

Em terceiro lugar, a idolatria é manipulativa. É uma forma de definir fronteiras para o invisível. As imagens de esculturas são representações concretas e visíveis da realidade intangível. A princípio, pode ser uma tentativa de trazer para a realidade presente aquilo que se sente que está distante. Talvez fosse essa a intenção dos israelitas ao construir o bezerro de ouro. Colocar uma forma e uma face naquele que os havia libertado do cativeiro. Mas os desdobramentos dessa forma de pensar são extremamente enganosos. Uma vez que o invisível esteja aprisionado em uma forma, ele pode ser facilmente ignorado. O ídolo é manipulável. Ele pode ser venerado e descartado com a mesma facilidade, pois quem está no controle, na verdade, é o próprio homem.  

Idolatria evangélica

Olhando sob esse prisma, aqueles que se denominam adoradores de um único Deus, podem cometer dois grandes erros.
O primeiro é dizer que não somos idólatras, quando nosso coração está cheio de altares. Dizer que não nos prostramos diante de ninguém senão de Deus, quando, na verdade, continuamos venerando nosso reflexo no espelho, fazendo tudo convergir ao nosso umbigo.
No entanto, o mais enganoso dos erros é o erro de servir ao único e verdadeiro Deus com um coração idólatra. A tentação de fazer de Deus um mero deus e, da adoração, mera idolatria.
Fazemos isso aplicando os valores da idolatria em nossa espiritualidade. Relacionando-nos com Deus de forma utilitária, egocêntrica e manipulativa. Quando nossa relação com Deus consiste apenas de usá-lo em prol do alcance de nossos desejos. Quando aquele que deve ser o centro é apenas um meio. Quando nos damos o direito de ignorá-lo uma vez que o consideremos desnecessário. 
A idolatria evangélica é ainda mais contundente do que a veneração a imagens. Quando a praticamos, tentamos reduzir Deus a uma função menor: a função de nos fazer felizes. E quando a felicidade é o desejo final, Deus se torna um mero ídolo. Aquele que é o princípio e o fim de todas as coisas é visto como um trampolim para a realização de seus filhos. Ao invés de ser adorado, passa a ser utilizado. E nada nos acusa de idolatria, pois continuamos cantando nossos cânticos de adoração, praticando nossas disciplinas espirituais e realizando nossas rotinas religiosas. Mas o intento final não é a glória de Deus e, sim, a exaltação pessoal. Se as motivações são centradas no homem, o deus adorado aos domingos é o próprio homem. Servimos a Deus com coração idólatra quando olhamos para Deus procurando enxergar a nós mesmos. Quando levantamos as mãos aos céus, enquanto nos é conveniente. Quando ignoramos a soberania do Deus que nos sonda e conhece para manipularmos sua palavra, visando nosso bem-estar.
Deus é um ídolo quando ele se torna um passaporte para o céu ou um escape do inferno. Deus é um ídolo quando ele se torna um mero pagador de contas e provedor de luxos. Deus se torna um ídolo quando não aceito sua autoridade disciplinar em minha vida, revoltando-me contra os maus acontecimentos da vida e exigindo que ele faça alguma coisa para que eu volte a me sentir bem.  

1. Deus Impessoal

Quando Deus se torna um ídolo, ele se torna impessoal. Estabelece-se uma relação fria, na qual Deus deixa de ser uma pessoa para tornar-se uma energia, uma “coisa” indefinida, que, justamente por não ser definível, não se importa de ser utilizado. Deus acaba assumindo a forma do objeto de desejo, uma vez que quem assim o vê apenas o concebe como sendo um meio para se atingir um fim.
A única situação em que uma pessoa consegue usar outra é quando o outro não é visto como pessoa. Tome por exemplo a prostituição. Um homem somente consegue usar a mulher como objeto, uma vez que não a veja mais como um ser humano. Ignorando sua individualidade e sufocando sua personalidade, aquele que usa alguém não vê problema algum, pois, afinal, é como qualquer outro objeto.
Ao ignorar a revelação de Deus como pessoa, o homem passa a utilizá-lo como qualquer outro objeto, como se a função de Deus fosse servir os interesses particulares dos homens. 

2. Apenas Um dos Gomos da Laranja

Quando Deus se torna um ídolo, ele passa a ser apenas mais uma parte da vida. Nos dias atuais, os homens não ignoram a necessidade humana de espiritualidade. A maioria busca uma determinada expressão de espiritualidade que a faça de alguma forma transcender. No entanto a espiritualidade, nesses casos, não passa de mais uma faceta de uma vida multifacetada. Da mesma forma que a academia de ginástica ou o divã do psicólogo, o templo budista, a sessão espírita, a missa ou a igreja evangélica vêm simplesmente preencher uma necessidade da complexa vida humana.
“...a maioria de nós encara a vida como uma laranja e pensa que Deus é um dos gomos. Funciona mais ou menos da seguinte maneira: assim como interagimos com o trabalho, o lazer, o dinheiro, as pessoas, o corpo, a igreja e por aí vai, também interagimos com Deus – Deus é uma das nossas interações.”1 Nesse sentido, o papel de Deus na espiritualidade do homem pós-moderno é reduzido ao de mero preenchimento ocasional. O grande perigo desse tipo de abordagem é que ela isenta quem assim pensa do incômodo do questionamento. Abrigados pelo confortável esquema religioso, todos parecem estar em paz com a consciência e com Deus, e não existe nenhuma acusação que os faça repensar seus valores.
A religiosidade é um grande engano, talvez a maior aliada de Satanás no ofício de cegar o homem em relação à sua constante necessidade de Deus. Em uma espiritualidade sadia, o homem, embora buscando a santidade, nunca perde de vista suas limitações e tendências pecaminosas. A santidade de Deus e o contato com ela continuamente trazem à luz os ambientes obscuros do coração do homem, levando-o à humildade e ao arrependimento. A religiosidade abafa essa manifestação da luz, amortecendo os sentidos espirituais como uma espécie de anestesia, afastando o homem de Deus enquanto o faz pensar que está mais próximo dele.
 
3. Espiritualidade Imediatista

Quando Deus se torna um ídolo, sua espiritualidade se torna imediatista. Assim que Deus passa a ser visto como um objeto de uso, ele acaba sendo avaliado por seu desempenho. Em um mundo tecnológico onde a rapidez de resposta é a marca registrada da maioria dos objetos de uso, Deus tem a obrigação de responder com rapidez e eficiência.
Falar sobre o kairós de Deus é algo obsoleto e inquietante em uma sociedade acostumada a acionar botões. As pessoas estão cada vez mais impacientes. Ficam extremamente irritadas por esperarem um ou dois minutos no caixa eletrônico. Sentem que estão perdendo tempo. Sob essa perspectiva, se o cristianismo não providenciar respostas rápidas e prontas, ele se torna um sistema inadequado ao modus vivendi atual.
Enfim, à medida que esse processo se desenvolve, as posições vão se invertendo. O homem se torna deus e Deus, um mero ídolo. 

Vencendo a idolatria

Deus não procura idólatras, ele procura adoradores. A adoração pressupõe submissão. Se nossa postura idólatra é constituída a partir de nossos desejos, a única maneira de deixar de ser idólatra é desejar a Deus. Se nossa busca pela felicidade nos torna idólatras, precisamos fazer de Deus nossa felicidade. Somente quando nosso deleite estiver centrado nele é que poderemos chamá-lo de Deus.
Creio que a verdadeira adoração é encontrar em Deus o lugar de prazer. Quando olhamos para ele sem enxergar nossas projeções e ideais, e conseguimos nos deliciar tão-somente no fato de estarmos com ele, então a libertação acontece.
No entanto, é necessária uma honesta avaliação. Como disse no início, existe uma imensa batalha sendo travada em nossas mentes, procurando anestesiar-nos em relação à idolatria. Mas se nos colocarmos diante de Deus, permitindo que ele nos sonde, nossa postura idólatra se evidenciará. Quando a imagem de Dagom foi colocada diante da Arca da Aliança, o ídolo pagão caiu por terra totalmente desmembrado. É preciso um Deus verdadeiro para confrontar a idolatria. É preciso submeter-se à avaliação divina; deixar que ele traga à tona nossas reais motivações, para que possamos encontrar lugar de arrependimento.
A idolatria é, sim, um pecado dos crentes. E, como todo pecado, precisa de arrependimento para ser limpo. O primeiro mandamento continua abordando um problema atual: nossa tendência em formar ídolos. Refletindo mais tarde, descobri que Mateus 22.17 não substitui Êxodo 20.3. Não é possível amar a Deus sem antes derrubar os ídolos, assim como não é possível adorar sem deixar de ser idólatra.
Que Deus nos perscrute com sua palavra e seu Espírito, derrube nossas tendências idólatras e seja para nós o único e verdadeiro Deus.

por Mateus Ferraz de Campos
http://www.kolshofar.com.br/

2 comentários :

  1. Oi Simone!

    Obrigado pelo comentário em meu artigo "Queima de Arquivo" lá no Genizah.

    Fique à vontade para publicá-lo.

    Aproveito para lhe parabenizar pelo belo trabalho aqui no blog. Gostaria de segui-lo.

    Também quero lhe convidar a conhecer o meu blog pessoal, e se desejar também segui-lo, será uma honra. Seus comentários lá também serão muito bem-vindos.

    www.hermesfernandes.blogspot.com

    Te espero lá!

    ResponderExcluir
  2. Olá, Bispo Hermes.
    É um prazer tê-lo aqui neste pequeno blog. Fico feliz por você estar aqui, gosto muito dos teus artigos.
    Fique na Paz de Cristo.

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